Os que ficaram para trás… e foram para a frente… e não voltam atrás

Por: Cátia Cardoso

Nunca, como nos tempos de pandemia, imperara tanto a máxima “não deixar ninguém para trás” e também nesses tempos – que parecem esquecidos, pelo menos para aqueles cujas sequelas se perderam no andamento dos ponteiros dos relógios – nunca foi tão importante o digital para nos mantermos próximos, comunicarmos, estudarmos e trabalharmos (muitos de nós).

Seria de esperar que esses difíceis momentos alavancassem algumas políticas de igualdade, todavia, e na definição de “event” (acontecimento) de Robin Wagner-Pacifici, a pandemia não trouxe mudanças estruturais, e não parece difícil constata-lo.

Como tal, envoltos na ideia do “não deixar ninguém para trás” quase passara despercebido o quão para trás fomos ficando (e nem vamos falar das crianças e jovens sem acesso a computadores, nem dos programas escolares descontinuados outrora e que se teriam revelado assaz oportunos nesse contexto).

A Maria deslocava-se duas vezes por semana para Aveiro, onde se encontra a fazer doutoramento, até que decidiu mudar-se de vez. Agora, investiga a partir de casa, mas naquela cidade, através de uma internet rápida e eficaz, o que não lhe era possível em Canelas. Entretanto, já não pretende regressar.

O João é engenheiro informático. Mudou-se para Lisboa para trabalhar, apesar de a empresa lhe permitir fazer teletrabalho, porque morava em Espiunca, numa zona não coberta por fibra ótica. Casou com uma local e teve um filho, não tenciona regressar.

A Rita é gestora de clientes, numa empresa sediada no Porto. As suas colegas, com o mesmo cargo e a viverem diferentes zonas do país, fazem teletrabalho. Mas a Rita não pode, porque a fibra ótica não abrange a sua casa, em Canelas. Quer voltar, mas reconhece que não será possível o regresso mantendo o emprego.

O Luís é jornalista. Como na casa onde sempre viveu, em Espiunca, não consegue aceder a uma internet digna que lhe permita estar numa simples reunião online, mudou-se para a cidade de São João da Madeira, onde fica mais próximo de Gaia, onde trabalha, além da possibilidade de trabalhar, alguns dias, a partir de casa com internet ajustada às necessidades. Entretanto, ali comprou casa. Não tenciona regressar para Arouca.

Qualquer semelhança dos casos acima descritos com a realidade não é pura coincidência, serão retratos sociais de uma realidade que, dia após dia, nos vai deixando para trás, nos vai afastando de casa, da família, das primeiras amizades, forçando a cortar raízes… diminuindo a esperança de regressar à terra natal, de certa forma, em linha com as conclusões do estudo de Rui Gomes em “A fuga de Cérebros”.

Qualquer postura que tenhamos adotado, qualquer política que se tenha vindo a implementar… foi insuficiente. Aqui, muitas pessoas continuam para trás. E para irem para a frente (na vida, sobretudo, profissional) são forçadas a deixar para trás o que davam por seu, mas, por força das circunstâncias cortam os laços, resignam-se e perdem o desejo de voltar.

A exclusão digital existe e não pode ser ignorada, sob pena de ser admitida. Falar de uma sociedade acessível, em 2023, tem de ser falar das acessibilidades no digital (aliás, há alguns anos que assim tem – ou devia ter de – ser).

A Maria, o João, a Rita e o Luís ficaram para trás e, por isso, tiveram de ir para a frente. Quantos de nós somos a Maria, o João a Rita ou o Luís? Quantos até queríamos voltar, mas, assim não dá?

Não deixar ninguém para trás não se pode aplicar apenas aos nossos queridos séniores. Não deixar ninguém para trás também é olhar para os jovens das nossas aldeias e procurar respostas para a sua fixação, sobretudo quando a saída do território não é uma opção, mas antes uma imposição. Quantas opções teremos, nesse contexto, por comparação com as imposições das circunstâncias? Não é um problema local, evidentemente, mas transversal a várias regiões, sobretudo do interior do país, em que somos colocados numa situação de vulnerabilidade digital e, no seguimento, social. Por isso, podem falhar as autarquias e pode, ainda mais, ter falhado o Estado Central. Falhamos como sociedade e, no digital, falha o Estado Social, que todos os dias vai deixando pessoas para trás ou forçando-as a ir para uma frente sem perspetivas de regresso a atrás onde gostaríamos de estar igualmente à frente… igualmente. Porque, no fundo, falamos de igualdade. Digital, que é, nos dias correntes, também social, cultural, profissional, económica…

sobre o autor
Cátia Cardoso
Discurso Direto
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