Em entrevista ao Discurso Directo, o técnico falou-nos da sua carreira e das várias experiências que vivenciou, em Portugal e lá fora
Há quem tenha uma visão bastante supérflua do futebol, resumindo-o a pouco mais do que um desporto onde 22 atletas correm atrás de uma bola durante largos minutos, pontapeando-a constantemente. E ainda que o futebol se tenha tornado cada vez mais um negócio, repleto de novidades estranhas e cada vez mais afastado do adepto comum, ainda existem várias histórias que valem a pena contar.
É o caso do treinador Luís Figueiredo, natural de Santa Eulália (Minhãos), que atingiu a marca redonda de 20 anos de carreira ligado ao treino e ao jogo. Em entrevista ao Discurso Directo, o técnico falou-nos da sua carreira e das várias experiências que vivenciou, em Portugal e lá fora, bem como dos dissabores que, infelizmente, fazem parte do seu percurso. Após publicarmos, na última edição do jornal impresso, um compacto da entrevista, iremos agora publicar no nosso site, por partes, os vários temas abordados. Na primeira parte, conhecemos os primeiros passos da carreira de Luís Figueiredo, e na segunda ficamos a conhecer pormenores das suas passagens por clubes da região, (AD Valecambrense e FC Arouca), onde contactou, por exemplo, com Morlaye Sylla, bem como as especificidades da função de coordenador técnico (e as diferenças com a do treinador) e o porquê de não ter registado outras experiências nos diversos clubes de Arouca, Castelo de Paiva e Vale de Cambra.
Nesta terceira parte, olhamos mais para a vertente social, inerente às várias experiências pelo mundo afora que Luís Figueiredo teve.
“Foi fantástico. Primeiro, em Itália, ainda muito jovem, fui fazer Erasmus. Fui com dois amigos meus e escolhemos Itália pelo futebol. Haviam vários países de Leste, financeiramente eram muito mais baratos, mas resolvemos ir para Itália porque era dos países que nos podia dar mais coisas para nós ficarmos mais ricos como treinadores. Aquilo que aprendemos lá, são coisas que ainda trago na minha vida como treinador. Foi a primeira vez que saímos de Portugal, foi bom termos ido os três, porque fomos as muletas uns dos outros. No início, pode parecer fácil, mas nós passamos por muitas dificuldades e muitas vezes apetece desistir, e não desistimos porque temos o colega de lado que nos agarra. Às vezes, aqueles pensamentos são momentâneos, e se eu estiver sozinho nesse pensamento, pego na mala e venho embora, mas se tiver alguém que me dê a mão, aguentamos.
É lógico que, no início, tivemos problemas, mas depois entramos na vida normal, correu muito bem. Deu para perceber o que é viver no estrangeiro.
Depois mais tarde, em 2021, quando surge a proposta da Finlândia. Nos Países Nórdicos, por exemplo, as oportunidades dos clubes são publicadas no site dos clubes, ou seja, nós podemos concorrer. Quando concorri, foi numa de descarte de consciência, porque ele estavam a pedir UEFA A e a altura tinha o UEFA B. Concorreram cerca de 37 treinadores, 36 com UEFA A e eu o único com UEFA B. E depois sou o único escolhido, devido ao meu passado, ligado à formação, ligado àquilo que eu podia aportar ao projeto. Em Portugal, diziam-me que eu não tinha experiência, mesmo para equipa sénior, nunca me deram oportunidade e ela vem a surgir no estrangeiro, devido ao meu passado como profissional.
Foi fantástico, foi um projeto de um clube (Kajaanin Haka) que estava ligado ao Centro Olímpico Finlandês. O meu projeto era desenvolver atletas para o alto rendimento, era englobado com a universidade local. Para quem não sabe, estudar na Finlândia é gratuito para o cidadão europeu, ou seja, eu, como português, posso estudar lá e não pago propina. Tivemos dois casos de dois portugueses que foram estudar para lá, um deles arouquense (Miguel Soares).
Fomos campeões no 1º ano, subimos à Liga 3 de lá, desenvolvemos e vendemos atletas. Logo no 1º ano, conseguimos vender um atleta para o HJK, que é a melhor equipa de lá, mas como uma mentalidade completamente diferente.
O atleta que vendemos, eu vim buscar aos sub-23 do B SAD, com um passado fantástico, Benfica, Tondela, campeonato nacionais da formação. Passado três meses, estamos a vendê-los por 20.000 € e um saco de 10 bolas. E vocês podem achar que é pouco, mas 20.000 € deu para pagar o salário do jogador e as despesas todas. O objetivo era esse, por muito pouco que seja, o jogador possa dar o retorno, possa pagar a sua estadia e ainda dar algum lucro.
Na 2ª época, continuamos, levamos mais alguns jogadores portugueses. Foi uma época atípica, com muitas lesões. Era no tempo COVID, problemas financeiros. Por norma, os clubes não ficam a dever nada a ninguém, foram sempre muito sérios. Foi um sacrifício enorme do clube para poder pagar.
Depois o Centro Olímpico mudou de dirigentes, a nova Direção não queria apostar no futebol. Mesmo assim, o clube manteve a ligação.
Foi uma época muito sofrida, mas foi uma aprendizagem fantástica, das maiores que tive. No final da época, descemos de divisão, no último jogo, nos últimos minutos. Uma época com muitas lesões, 2 atletas com o pé partido, 3 meses fora, tive o guarda redes que acabou a carreira no 3º jogo, com uma lesão grave no ombro, tive um guarda-redes de 16 anos na baliza durante 10 jogos, tive jogadores de 15 anos a estrearem-se na equipa principal, muitas expulsões.
Foi uma época muito atípica, plantel muito curto, mas ainda assim conseguimos aguentar até a última jornada, descemos, mas mesmo assim conseguimos vender 3 jogadores para equipas da 1ª Liga. Um para o HJK, 2 para o KuPS, que é a segunda equipa mais forte. E o objetivo, que era formar e desenvolver e colocar atletas no alto rendimento, foi conseguido”.
“Fiz a minha vida normal, andava sem máscara, ia às superfícies normalmente. O número de casos na Finlândia nunca era muito alto, as pessoas depois também resguardavam-se, devido também ao seu estilo de vida. São mais reservados, não convivem muito e isso ajudou a que a doença não se propagasse. Tivemos atletas infetados, mas levamos a nossa vida normal”.
“Eu passo da Finlândia onde apanho -35º em pleno inverno e vou para a Índia, onde é calor todo o ano e ando de calção e manga curta o ano todo, chego a ter temperaturas, ali por volta de março/abril, de 44º. Adorei viver na Índia, quem tiver oportunidade, vá conhecer, porque é um país fantástico. A cidade onde eu estava tinha 10 milhões de habitantes. Existe muito lixo, mas agora nós também fazemos um bocadinho de reflexão, numa cidade com 10 milhões de habitantes, é normal que vá haver lixo. Os animais andavam na rua, são sagrados, as vaquinhas, as ovelhas, as cabras. As pessoas andam descalças, e isso tem um significado, porque dizem que o contacto com a natureza, com a terra, as energias negativas conseguem sair através dos pés. No condomínio onde eu vivia, via as pessoas a caminhar no jardim descalças, mesmo com esse sentido de meditar.
As festas, existe aquele flow mesmo de alegria. Lá, eu percebi mesmo o que é que é alegria. É um sentimento difícil de explicar, porque uma pessoa sente mesmo. As pessoas perguntavam de onde eu era, dizia que era de Portugal e eles adoravam, vinham pedir para tirar fotos.
Em relação ao futebol, os atletas muito interessados, tudo aquilo que eu dizia, eles tentavam aplicar. Os treinadores super interessados, eu às vezes dava exemplos e depois, no treino, estava a ver e dava conta que eles próprios diziam aquilo que eu tinha acabado de dizer. Eles valorizaram a informação que nós passávamos, valorizam muito o estrangeiro, porque sabem que o estrangeiro está lá para ajudar o país. Eles tiveram muitos anos sob domínio inglês e têm um respeito enorme.
Existe a tradição das castas (estratificação social hereditária, que divide a sociedade em grupos fixos e hierárquicos), as pessoas lá respeitam e aceitam que nasceram pobres e são felizes. Vi crianças sem brinquedos, sem telemóveis, descalços, com um sorriso genuíno. Uma pessoa fica a pensar na vida, realmente nós às vezes damos valor a coisas sem importância nenhuma.
Houve momentos em que eu lembrei da minha infância, quando não havia telemóveis, quando as pessoas vinham brincar para a rua, umas com as outras. Foi um sentimento fantástico, e as festas deles, respeitam muito todas as religiões. A maneira como eles festejam é mesmo de alegria. Foi um país que eu tenho um carinho muito grande e que espero e gostava de um dia voltar a trabalhar na Índia.”
Texto: Simão Duarte
Foto: Sofia Brandão
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