Ser ou não ser política cultural: eis a questão

Por vezes, para sabermos o que é uma coisa precisamos, primeiramente, de saber o que ela não é. Saber o que não queremos é o primeiro passo para conseguirmos identificar o que poderemos querer. E podem ser várias as circunstâncias em que se revele pertinente adaptar esta máxima, inclusivamente no traçar de políticas culturais.

Assim, o sociólogo João Teixeira Lopes aponta o que não é uma política cultural, antes de indicar o que esta deve ser. E o que não é política cultural? Não é política cultural um conjunto desarticulado de iniciativas dispersas quer no espaço, quer no tempo, ou um punhado de ações mediáticas, de cariz efémero e sem capacidade de transformar. Não é política cultural a obsessão pela infraestruturação sem um pensamento sobre os projetos e usos potenciais dos equipamentos. Não é política cultural o que tentar impor uma cultura oficial, privilegiando determinada visão sobre o mundo. Não é política cultural o populismo demagógico de dar ao povo o que o povo quer, sem critérios explícitos e públicos de qualidade. Não é política cultural dividir iniciativas culturais em público-alvo (atividades dirigidas ao povo, atividades para as classes médias e iniciativas para as elites). Este último ponto assenta claramente no princípio da democracia cultural, ao rejeitar a existência de culturas superiores e culturas inferiores

O autor defende assim que uma política cultural requer intencionalidade. Com intencionalidade, podemos dizer também que a política cultural deve ser devidamente pensada e projetada, com objetivos claros, concretos e que sejam do conhecimento geral. Não ser um “fazer por fazer”, mas ter determinados fins, sejam eles mais pedagógicos ou mais próximos de uma vertente de entretenimento. Parece-me, também, que isto deve valer para qualquer política, seja mais ou menos cultural.

Defendo, tal como João Teixeira Lopes, que as políticas culturais devem orientar-se para o objetivo geral da democracia cultural, considerando o fracasso da democratização, bem como as debilidades do projeto escolar. Nesse sentido, o sociólogo apresenta os princípios norteadores da democracia cultural, que se contrapõem às políticas de apoio às celebridades e às de mera democratização (acesso) cultural, dos quais destaco o papel interventivo e regulador do Estado, com medidas como preço fixo do livro, quotas de difusão de música, formação de públicos, e destinadas ao funcionamento das instituições, bem como de política fiscal e assistência ao mercado (compra de obras e distribuição). Concordo também com a recusa da crença nas virtudes do mercado à rédea solta e do dirigismo estatal. Uma política cultural exige desenvolver uma estratégica de suporte à participação cultural, através de trabalho em rede com os diferentes setores da área, incluindo o terceiro setor. Exige também incorporar respostas ativas, sistemáticas e concertadas a projetos, propostas e interesses de profissionais, associações, instituições e públicos, assentando numa prestação de serviço público. Além disso, é fundamental haver entre forças políticas e artistas/criadores uma relação que maximize as vantagens da flexibilidade do trabalho artístico, nomeadamente assegurando quadros de segurança social e de contratualização laboral. O Estatuto Profissional do Artista parece ser uma resposta para este último ponto, sendo ainda precoce fazer a análise da sua eficácia.

Estas linhas orientadoras, retiradas do livro “Da democratização à democracia cultural”, de João Teixeira Lopes, ajudam-nos, enquanto público, a compreender quando estamos perante uma política cultural e quando não estamos, quer na escala nacional, quer na escala regional e local. É fundamental que haja objetivos definidos em cada iniciativa e que esses objetivos não passem pelo culto à celebridade, pela mediatização, pela imposição de uma cultura oficial, por populismos demagógicos, nem por dividir as iniciativas culturais em público-alvo.

Se soubermos distinguir uma política cultural de uma não política cultural estaremos em melhores condições de avaliar o trabalho das camadas políticas na área cultural. Caso contrário, se, como as não políticas culturais, não tivermos critérios definidos, poderemos colocar em causa a legitimidade do nosso posicionamento, pois nenhuma ideia de democracia cultural deve ignorar que o conhecimento (que permite a definição de critérios) legitima.

sobre o autor
Ana Isabel Castro
Discurso Direto
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