Um dos aspetos mais curiosos da sociedade portuguesa é o seu amor predileto por Ricardo Araújo Pereira. A idolatria, a estima e a empatia em torno do maior anestesista da nação é espécie de amor cego e pueril; na verdade, gostamos tanto do Ricardo que estamos dispostos a tolerar a sua falta de criatividade, a sua canastrice e a sua omnipresença. Não há, seguramente, figura que reúna mais admirabilidade e consensualidade no seio do povo português.
O Ricardismo é já um culto. Tudo o que o Ricardo faz, diz ou pensa é imediatamente absorvido, e todos os seus números, chistes, comentários, pensamentos, textos e piadas – mesmo que banais – são sempre percecionados como geniais. Que religião é esta? Porque endeusamos tão ingenuamente esta figura? Porquê a nossa obsessão com um humorista cerebral que só se expõe verdadeiramente quando a temática do dia é sobre o politicamente correto nos países anglo-saxónicos e o estado de graça do Benfica?
Evidentemente, não há uma resposta óbvia que justifique este frenesim, porém há que notar que os humoristas contemporâneos já não têm como único objetivo fazer-nos rir. Os humoristas – talvez mais do que nunca – querem-nos fazer pensar, e quem mais qualificado para o fazer do que eles nesta era do cansaço e da ignomínia? Paladinos do pensamento livre, os humoristas têm hoje um papel fundamental, relembrando-nos de que o ser humano pode vencer as trevas ao explorar o absurdo e as contradições impostas pelos vários convénios sociais. Veja-se, por exemplo, como John Oliver nos alerta para os problemas mais profundos da sociedade americana com recurso às subtilezas do humor britânico; veja-se como Dave Chapelle questiona habilmente as questões identitárias; e como Ricky Gervais nos faz refletir sobre a existência e condição humanas perante a dureza da vida.
É óbvio que o Ricardo é um humorista, mas é ao mesmo tempo alguém que nos faz pensar; dele esperamos um argumentário lógico e lúcido, como se o próprio fosse uma espécie de reduto do bom senso, num país onde praticamente já não há quaisquer referências morais. Esta relação entre nós e o Ricardo não foi deliberada pelo próprio – fomos nós que a quisemos; fomos nós que a construímos. Pensando bem, o que nos resta senão rir com o Ricardo, aquele que nos faz sistematicamente pensar sobre o lado trágico-cómico das amarguras e das peripécias da vida nacional? O Ricardo sabe melhor que ninguém que o riso é o melhor amigo da razão; uma poderosíssima arma contra a estupidez e falta de razoabilidade.
Talvez a nossa admiração exacerbada pelo Ricardo seja um sintoma de uma sociedade que deixou de pensar, de refletir e de rir livremente, e é possível que caíamos no erro de achar que ele não nos pode desiludir. É uma asserção ingénua e autoimposta, mas creio que se trata de uma relação em que há um que dá mais do que outro: ele faz-nos rir e pensar, e nós, por outro lado, queremos transformá-lo numa espécie de santo padroeiro da moral e do pensamento livre.
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